Decisões recentes do Poder Judiciário acendem um alerta no setor empresarial e jurídico quanto à crescente insegurança jurídica nas contratações públicas. Empresas que prestam serviços ou fornecem produtos para municípios têm enfrentado não apenas atrasos recorrentes, mas também manobras judiciais utilizadas por gestores para postergar pagamentos de dívidas reconhecidas judicialmente — uma prática que, na avaliação de especialistas, ameaça diretamente o ambiente de negócios.
Um caso emblemático vem do município de Várzea da Roça, na Bahia, que, apesar de ter um precatório emitido desde 2023, referente a uma dívida consolidada após sentença definitiva, não realizou o pagamento no exercício financeiro de 2024, como exige a Constituição. O município também não buscou acordo, nem apresentou proposta de parcelamento.
Diante da inadimplência, a empresa credora precisou recorrer à medida extrema de sequestro judicial de verbas públicas, autorizada pelo Tribunal de Justiça da Bahia (TJ-BA) — que reconheceu o descumprimento da obrigação. O Ministério Público também se posicionou pela legalidade do bloqueio.
No entanto, após pressão pública — inclusive com participação do prefeito em programas de televisão —, o caso foi levado ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que acatou o pedido do município e suspendeu o sequestro dos recursos. A decisão abriu um precedente que preocupa juristas e o setor produtivo.
“Essa situação é gravíssima. Quando o próprio Judiciário permite que um ente público descumpra uma ordem constitucional, abre-se um caminho perigosíssimo para o desmonte da segurança jurídica”, afirma o advogado Victor Leal, especialista em Direito do Estado e em Licitações e Compras Sustentáveis e presidente do Instituto Baiano de Empresas Licitantes (IBEL).
Leal alerta que o caso pode desencadear um efeito dominó, estimulando outros municípios a adotarem o mesmo caminho. “Se essa decisão prevalecer, não apenas Várzea da Roça, mas qualquer município poderá simplesmente não pagar precatórios. E isso não afeta apenas uma empresa. Impacta toda a cadeia produtiva: fornecedores, funcionários, comércio local e, por consequência, o próprio serviço público, que depende dessas contratações para funcionar.”
De acordo com o advogado, o descumprimento dos pagamentos não ocorre, na maioria das vezes, por falta real de recursos, mas por escolhas políticas equivocadas. “É contraditório quando um município alega que não tem dinheiro para pagar uma dívida judicial, mas gasta milhões com festas, contratações questionáveis e despesas que não são essenciais”, ressalta.
A legislação brasileira estabelece que, uma vez transitada em julgado a sentença contra a Fazenda Pública, o pagamento deve ocorrer via precatório, que precisa ser quitado no exercício financeiro seguinte. Quando isso não ocorre, cabe ao credor requerer o sequestro de verbas públicas, medida legal, prevista na Constituição, justamente para proteger o direito do credor diante da inadimplência estatal.
“Quando o CNJ interfere em um processo como esse, o que está em jogo não é apenas aquele pagamento específico, mas todo o arcabouço de segurança jurídica que sustenta o mercado de contratações públicas no país”, alerta Leal.
A preocupação não é trivial. Dados da Federação Nacional das Empresas Prestadoras de Serviços mostram que a inadimplência de entes públicos com fornecedores vem crescendo nos últimos anos, especialmente em municípios de pequeno e médio porte. O receio agora é que o episódio envolvendo Várzea da Roça sirva de modelo para outros gestores que desejem postergar dívidas, gerando um ambiente de insegurança para quem depende de contratos administrativos.
“Os empresários precisam entender que, apesar de ser uma minoria, ainda há riscos na contratação pública. E o Judiciário deveria ser o guardião do cumprimento da lei, não um agente que fragiliza as garantias constitucionais”, reforça o presidente do IBEL.
O Instituto estuda acionar entidades empresariais e órgãos de controle para que casos como esse sejam acompanhados de perto, evitando que a decisão do CNJ se transforme em regra. “O que está em risco não é apenas o direito de uma empresa, é o funcionamento de todo o sistema de contratações públicas. O país não suporta mais retrocessos na segurança jurídica”, conclui Leal.