Organizações que atuam para proteger a liberdade de imprensa no Brasil manifestaram preocupação com a “grave ameaça” a ela, em razão do julgamento no Superior Tribunal de Justiça (STJ) de uma ação movida pelo ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF), contra a revista IstoÉ, a jornalista Tabata Viapiana e o presidente da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), Octávio Costa. O objeto da ação é a reportagem “Negócio suspeito”, publicada em dezembro de 2017.
A Coalizão em Defesa do Jornalismo (CDJor), que reúne 11 dessas organizações, e o site oficial de várias delas – como a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), a Federação Nacional de Jornalistas (Fenaj) e a própria ABI – publicaram notas sobre “o risco de um precedente de censura judicial contra jornalistas que atuam sem má-fé e em prol do interesse público”, além do “uso do sistema de Justiça por figuras públicas para intimidar repórteres e veículos de comunicação”.
A matéria original divulgou informações referentes à investigação do Ministério Público Estadual (MPE) sobre a aquisição feita pelo governo do Mato Grosso de uma universidade particular fundada em 1999 por Gilmar Mendes e sua irmã, Maria da Conceição Mendes França, em Diamantino, cidade natal do ministro do STF.
Os dois eram sócios na União de Ensino Superior de Diamantino (Uned), mas, no ano 2000, para poder assumir a Advocacia-Geral da União (AGU) por indicação do então presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, Gilmar teve de repassar sua parte na sociedade à irmã.
Em 2013, Maria da Conceição vendeu a instituição para a Universidade do Estado do Mato Grosso (Unemat) por R$ 7,7 milhões, de acordo com as informações divulgadas. Com a venda da Uned, a faculdade privada tornou-se o campus Diamantino da Unemat, oferecendo cursos gratuitos de Direito, Administração, Enfermagem e Educação Física. Essa foi a estatização investigada pelo MPE. “Depois desse negócio, a Unemat não adquiriu mais nenhuma instituição particular”, registrou IstoÉ.
O Antagonista acrescenta que, em 2018, em reclamação no Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), Gilmar acusou o promotor de Justiça Daniel Balan Zappia de ajuizar ações civis públicas por “mero desejo punitivo absolutamente infundado e que só poderia ser explicado por uma relação de inimizade unilateral de caráter capital”. Em março de 2021, o Tribunal de Justiça do Mato Grosso (TJ-MT) negou, por maioria, um recurso do MPE para investigar o ministro do STF e seus familiares.
O Antagonista lembra também que o governador do Mato Grosso na época da aquisição da Uned era Silval Barbosa (MDB), para quem Gilmar telefonou em 20 de maio de 2014, dia de uma operação de busca e apreensão na residência dele. Autuado por posse ilegal de arma, Silval chegou a ser levado até a sede da Polícia Federal para prestar esclarecimentos, mas pagou fiança para não ser preso e foi liberado.
Como o então investigado estava sob escuta telefônica da PF, a conversa com o ministro do STF foi gravada e veio a público. Nela, Gilmar questiona “que confusão é essa?”, exclamando “que loucura!” e “meu Deus do céu!”; e diz ao governador que conversará com o também ministro Dias Toffoli (“Eu tô indo pro TSE, eu vou conversar com o Toffoli”), relator do caso de Silval e responsável por ter autorizado a batida. Ao se despedir, ainda envia “um abraço aí de solidariedade”.
A reportagem da Istoé de 2017 lembrou ainda uma declaração de Gilmar de 2013 sobre sua relação com Silval: “Somos amigos de muitos anos, sempre temos conversas muito proveitosas.” Para ilustrar a alegada influência do ministro no Mato Grosso, a revista recordou uma resposta do então colega Joaquim Barbosa a ele: “Vossa Excelência quando se dirige a mim não está falando com os seus capangas do Mato Grosso.”
Quem já votou a favor de Gilmar?
O placar do julgamento no plenário virtual do STJ sobre a matéria da revista está 2 a 0, a favor de Gilmar. O ministro havia sido derrotado em primeira e segunda instâncias, mas recorreu ao tribunal superior, onde o relator, ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, em maio de 2021, inicialmente negou o recurso extraordinário, concluindo não haver comprovação de ofensa à honra, nem erro jornalístico.
“No entanto, em fevereiro de 2025, quase quatro anos depois, e após a apresentação de agravo pela defesa de Gilmar Mendes, o próprio relator reconsiderou sua decisão anterior e levou o caso a julgamento pela 3ª Turma.
Em voto proferido nesta terça-feira (3/6), o ministro entendeu que o texto continha ‘excesso de ironia’ e seria ofensivo à honra de uma autoridade pública, reformando a decisão das instâncias inferiores e condenando os réus, de forma solidária, ao pagamento de R$ 150 mil, acrescidos de juros de 1% ao mês e correção monetária desde a publicação da matéria.
Até o momento, a ministra Daniela Teixeira também acompanhou o voto do relator. O julgamento deve ser concluído em 9 de junho”, informam notas das organizações.
O Antagonista acrescenta agora informações sobre os dois magistrados, que ocuparam no Superior Tribunal de Justiça vagas destinadas a membros da advocacia pelo chamado Quinto Constitucional, previsto no artigo 94 da Constituição.
Ricardo Villas Bôas Cueva, indicado ao STJ pela petista Dilma Rousseff em abril de 2011 para a vaga aberta pela morte de Paulo de Tarso Sanseverino, participou de quatro edições do Fórum Jurídico de Lisboa – que virou só Fórum de Lisboa, mas ficou conhecido como Gilmarpalooza –, nos anos de 2018, 2021, 2022 e 2023, como registra o site do evento, promovido pelo próprio autor da ação, Gilmar Mendes. Na última participação, por exemplo, Villas Bôas moderou um painel intitulado “Inteligência artificial e governança algorítmica: desafios regulatórios”.
Gilmar e Villas Bôas também já participaram juntos de outros eventos, ao longo dos anos, como o Seminário Regulação e Desenvolvimento, em 31 de março de 2023, organizado pela Escola de Magistrados da Justiça Federal da 3a Região (EMAG); e o curso “Improbidade Administrativa e Agentes Públicos”, no qual palestraram em 11 de maio de 2012, sob organização da Escola da Magistratura (Emagis) do Tribunal Regional Federal da 4a Região (TRF-4).
Já Daniela Teixeira, indicada por Lula em agosto de 2023 para a vaga aberta com a aposentadoria do ministro Félix Fischer, concluiu mestrado em Direito, em 2020, pelo Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP), fundado também por Gilmar e administrado por seu filho, Francisco Mendes – cujo nome vem aparecendo em outras reportagens de imprensa em razão das relações comerciais da Confederação Brasileira de Futebol (CBF) com o instituto familiar.
O próprio ministro do STF publicou no X, em 5 de agosto de 2024, duas fotos em que aparece com Daniela em seminário do IDP. Gilmar exaltou o que chamou de “brilhante trajetória” da ministra e se referiu ao curso feito por ela como “nosso”.
“Nesta manhã, recebemos a Ministra do STJ Daniela Teixeira no @SejaIDP Summit. Durante o evento que marca o início do período letivo, os alunos puderam se inspirar na brilhante trajetória da palestrante, egressa do nosso curso de mestrado. Desejamos a todos um excelente semestre!”
O orientador de Daniela foi o desembargador Ney Bello, do TRF-1, aliado de Gilmar que o decano do STF tentou emplacar no STJ, mas que acabou ficando de fora da lista tríplice encaminhada a Lula. Daniela e Bello participaram do Gilmarpalooza, em Lisboa, em 2024. Ela palestrou no painel “Sistemas de justiça no século XXI: avanços e retrocessos”; ele, no painel “Criminalidade Transnacional e Virtual”.
Além de Villas Bôas e Daniela, os outros ministros que compõem a 3ª Turma do STJ e que, portanto, deverão votar no processo sobre a matéria de 2017 até segunda-feira, 9, são: Nancy Andrighi, Humberto Martins, e Paulo Dias de Moura Ribeiro.
Posicionamento editorial
O Antagonista expõe na presente matéria fatos objetivos e verificáveis, mas não vai reproduzir as sutis ironias de 2017 da revista processada, nem vai ironizar as relações aqui expostas entre Gilmar Mendes e ministros do STJ que votaram a favor dele, pois ainda não está claro, afinal, qual é o grau de ironia que configura um “excesso” passível de punição; e se há autoridades mais iguais que as outras em relação ao tema, já que a ironia a qualquer autoridade é tradição no debate público brasileiro e mundial.
Reforçamos apenas que, em país onde jornalistas e veículos são condenados por vigilância sobre o poder, a liberdade de imprensa não está ameaçada. Ela já acabou.